Leituras de Outubro – Adeus, zona de conforto!

Eu sei, a expressão zona de conforto é um clichê muito ultrapassado – e peço perdão por fazer uso desse lugar-comum assim, logo de cara. Porém, no caso das leituras desse mês, eu senti a necessidade de falar sobre uma tendência que é comum a muitas pessoas (se não a todas): o medo de arriscar.

É claro que há pessoas que são mais aventureiras, que se jogam sem receios, que desafiam os próprios limites. Mas, convenhamos, essas não são a maioria. 

Confesso que, há alguns anos, eu tinha mais coragem de ousar. O tempo foi passando e acabei me acomodando em meus gostos literários, entre outras coisas. E percebi o quanto isso é prejudicial, pois me fechei aos temas já familiares, e deixei de lado a aventura de entrar em contato com algo novo – e as infinitas possibilidades que surgem com isso.

Em termos de vida pessoal, outubro foi um mês conturbado para mim.

Foi o mês em que completei trinta e cinco anos de idade. Isso significa que tive muitas crises, sobretudo existenciais – acho que faz parte do inferno astral. Sendo assim, li poucos livros do início ao fim. Me esforcei para cumprir as metas dos dois clubes de leitura dos quais participo e terminei de ler, finalmente, um livro emprestado por um amigo.

Em meio a toda essa bagunça emocional e literária, esses foram os três livros que se destacaram. 

livros de outubro

O primeiro foi A Cor Púrpura, de Alice Walker. Esse foi o escolhido pelo clube do Leia Mulheres em São José dos Campos para outubro. Embora eu já tivesse assistido ao filme, muito tempo atrás, ler a  história de Celie nesse romance epistolar foi uma das experiências mais tocantes e transformadoras na minha vida literária.

Ao dialogar através de cartas – a princípio, com Deus, e depois com sua irmã  Nettie – a protagonista Celie relata sua trajetória pessoal: violentada pelo pai quando pequena, forçada a casar muito jovem, impossibilitada de ter filhos, separada da irmã e com a autoestima destruída pela opressão. A narrativa levanta temas que precisam ser debatidos em nossa sociedade, como racismo, machismo, desigualdade social e racial, papéis de gênero, espiritualidade e sexualidade.

Conforme a história se desenrola, Celie descobre a si mesma, se liberta da opressão de um casamento forçado, vive um grande amor e consegue ser independente após abraçar seu ofício como costureira. A Cor Púrpura é uma história de autodescoberta, superação, amadurecimento, relacionamentos humanos, reencontros e transformações sociais.

Essa leitura foi um leve desvio da minha zona de conforto. Apesar desse ser um livro clássico, eu sempre tenho receio de ler algo que já foi adaptado para o cinema. E, como eu já havia assistido ao filme dirigido pelo Steven Spielberg, fui adiando a leitura ao máximo, para evitar decepções. Posso garantir que tanto o livro quanto o filme são impecáveis e nem de longe decepcionantes.

O segundo livro totalmente diferente do que estou acostumada a ler foi O Sorriso da Hiena, do autor contemporâneo e meu conterrâneo de São José dos Campos, Gustavo Ávila. Além do tema de assassinatos – que normalmente evito quando vou comprar livros – , o fato de ter a presença do Gustavo na roda de debates já seria o suficiente para me deixar encabulada.

Uma coisa é discutir um livro entre colegas, outra coisa é debater na frente do autor. Durante todo o mês, fiquei dividida entre ler ou não ler o livro, entre comparecer ou não ao nosso encontro mensal do Piquenique Literário. Por fim, decidi arriscar, e foi uma experiência incrível. Além de contar sobre o processo técnico de criação da obra, sobre as dificuldades de ser um escritor iniciante (tema que muito me interessa), Gustavo nos ofereceu uma visão mais aprofundada sobre os personagens e a história.

Nunca pensei que um romance policial pudesse propiciar tantas reflexões. O Sorriso da Hiena é um suspense psicológico que dá medo, levanta questões como a origem da maldade e sobre os limites do ser humano.

A pergunta que fica no ar ao final da leitura é: se você tivesse a oportunidade de fazer o mal, para atingir um objetivo que poderia ter um resultado benigno para o mundo, o que você faria? 

É possível justificar o mal, quando por trás dele há intenção de fazer o bem? 

Por último, porém não menos importante, um dos livros mais inquietantes que já li na vida – e também um dos mais sensíveis, O Testamento de Maria, de Colm Tóibin. Antes de qualquer coisa, me permitam desabafar: Que livro maravilhoso! 

Nunca é fácil, para uma pessoa religiosa e espiritualizada, questionar suas próprias crenças. A sensação que tive durante essa leitura me lembrou dos estranhamentos causados pelo primoroso O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago.

Quando comecei a ler esse livro, que foi emprestado por um amigo, me deparei com a mesma dúvida em relação ao romance do Gustavo Ávila: continuar ou não? Comentar ou não? Por ser católica, eu costumava me chocar facilmente por tudo o que coloca em xeque a divindade de Cristo e os dogmas a respeito da virgindade e santidade de Nossa Senhora.

Porém, hoje consigo fazer uma distinção clara entre uma obra de ficção e a minha fé. Graças a Deus! Caso contrário, eu me privaria de ler uma história que rendeu muitos frutos. E eu não preciso me isolar dos argumentos contrários à minha fé para poder sustentá-la.

Pelo contrário: acredito que é justamente através das perguntas e das dúvidas que a fé se mantém e se fortalece.

Retomei questionamentos há muito abandonados: será que tudo o que lemos na Bíblia é verdadeiro? Será que não existem áreas cinzentas na história da vida de Jesus? Só o fato de eu me permitir esses pensamentos já indica que a literatura está cumprindo seu papel.

O balanço final do mês de outubro, no quesito leitura, foi extremamente positivo.

Consegui manter um ritmo estável (embora lento) no hábito de ler, fui ousada e me sinto orgulhosa por saber que posso, sim, desbravar novos territórios e enriquecer ainda mais meu repertório literário. Sem medo de que isso possa abalar minhas convicções.

Que venham mais meses e livros desafiadores como esses!


A Cor Púrpura – Alice Walker – José Olympio, 2016.

O Sorriso da Hiena – Gustavo Ávila – Editora Verus, 2017.

O Testamento de Maria – Colm Tóibin – Companhia das Letras, 2013.