Dentre as inúmeras cobranças que a vida em sociedade impõe sobre a mulher, a feminilidade é uma das formas mais sutis de tolher a nossa liberdade de existir. Uma constante exigência permeia todos os aspectos do cotidiano da mulher – a de ser sempre adorável, meiga, dócil, comedida, até mesmo recatada, reprimindo todo e qualquer impulso ou traço de personalidade que destoe do modelo “mulher ideal”, da “princesa”, da “boa moça”.
Desde pequenas, somos ensinadas a replicar determinados comportamentos pré-determinados como aceitos para o sexo feminino, principalmente aqueles que reforçam a submissão, a discrição e o papel de coadjuvantes de nossas próprias vidas. Brincamos de boneca, nos espelhamos nas princesas dos contos de fadas, aprendemos que os papéis que podemos exercer na sociedade são bastante limitados, que a nossa aparência é a nossa maior arma e que o valor atribuído a nós é proporcionalmente igual à nossa capacidade de sermos obedientes. Femininas, belas, suaves, quase angelicais – e nunca totalmente protagonistas de nada.
Arya Stark e Sansa Stark, personagens de Game of Thrones. Arya se recusa a ser uma “dama”, enquanto Sansa abraça a ilusão de que esta é a sua verdadeira vocação.
É certo que o movimento feminista contribuiu, e muito, para o rompimento de paradigmas, revolucionando a maneira como nós, mulheres, nos enxergamos enquanto indivíduos. Passamos a nos perceber como pessoas distintas, complexas, com desejos, ambições, sonhos, com capacidades iguais às dos homens, e começamos a lutar para sermos vistas desta forma. No entanto, infelizmente, parece que a batalha pelo reconhecimento da mulher como um ser humano completo, independente de sua aparência ou da maneira como se porta, é algo que travaremos para sempre.
Mas, voltemos ao tema. Afinal, o que é ser feminina? De forma geral, a feminilidade está associada à figura da mulher pequena, frágil, delicada, sorridente, decorada e usada como objeto decorativo. Todas nós já sabemos de cor o rascunho da mulher feminina idealizada: com rosto fino, cílios longos, aparência de boneca, bochechas coradas, cabelos longos e lisos (ou com cachos discretos e controlados), corpo hidratado e sem pelos, voz fina e suave, sobrancelhas desenhadas, lábios volumosos e rosados, acessórios, brincos, cosméticos, perfumes, sapatos de salto, cintas, espartilhos, sutiã, presilhas, esmaltes, sorrisos.
A lista é grande. Tudo deve ser controlado, desde os fios de cabelo até a sua personalidade. E o fato de nos sentirmos bem quando estamos em conformidade com estas normas do “ser mulher” é algo que me assusta.
Será que já não está na hora de desafiarmos estes paradigmas e seguirmos os nossos instintos, deixando aflorar quem realmente somos?
O conceito de feminilidade nada mais é que uma construção social, um conjunto de valores que projeta sobre a mulher uma visão idealizada bastante prejudicial. Vivemos constantemente preocupadas com tudo, desde o nosso aspecto físico até o nosso aspecto comportamental, e, para muitas de nós, esta preocupação nos impede de viver em paz, justamente por não permitir que sejamos quem gostaríamos de ser. E este é o grande “x” da questão.
Pense bem: quanto tempo – e dinheiro – uma mulher gasta para se manter feminina? Tempo e dinheiro que poderiam ser gastos com formação profissional, educação, autoconhecimento… Passamos horas escolhendo roupas para todas as ocasiões, aplicando cosméticos, tentando mudar o formato de nossos corpos, tudo pelo bem de sermos aceitas “como somos”.
O que, na verdade, é um paradoxo enorme, pois nós jamais conseguiremos nos aceitar e nos amar como somos, sem antes nos libertarmos destas construções. São muitos os pensamentos que nos cercam, em todas as esferas de nossos relacionamentos e atividades, haja vista que o nosso valor, como já disse, não é medido somente pelas coisas que produzimos ou por nossas capacidades.
A mulher solteira precisa sempre parecer desejável. A casada, também. Para as donas de casa, existe o medo de envelhecer, bem como o dilema de conciliar todas as tarefas domésticas e de criação dos filhos com as práticas para manter a beleza em dia. No caso das mulheres que trabalham, cuidar do visual é algo imprescindível, tendo em vista que, quando estão em posição de destaque, ou mesmo para conseguir chegar neste patamar, o quesito principal parece ser o quão agradável ou “decorativa” uma mulher consegue ser. E se a mulher é dona de casa e tem uma carreira, a pressão é duplicada.
E o que acontece com as mulheres que não se identificam com estas coisas? Se uma moça não usa brinco, não gosta de saias, prefere jogar vídeo-game do que brincar de boneca, não gosta de batom nem de esmalte, isto a torna menos mulher? Eu não sei quanto a vocês, leitoras, mas eu já fui chamada de “sapatão” inúmeras vezes, em momentos diferentes da vida, por causa de coisas como: eu gosto de rock, arroto, falo palavrão, uso coturnos, sou gorda….
Sejamos sinceras, a feminilidade é uma das piores formas de opressão, porque a gente passa a acreditar que se preocupar com essas coisas é algo natural da mulher. O mito da vaidade – e, por que não?, da futilidade – como algo intrínseco ao ser feminino nos obriga a perder o nosso tempo e a nossa identidade com coisas que, muitas vezes, nem nos interessam. E tudo isso em nome da aceitação, em nome do prêmio máximo de sermos desejadas ou validadas pelo sexo oposto, ou até mesmo para perpetuar a competição tão incentivada entre as mulheres.
São muitas as vozes que nos dizem, internamente e do lado de fora, como devemos ser….
Seja bela. Seja feminina. Use saias, mas não tão curtas. Aplique a quantidade certa de maquiagem. Revele sua pele, mas só um pouco. Valorize suas curvas, contanto que sejam esbeltas. Seja delicada. Fale baixo, quase sussurrando. Flutue sobre pétalas de rosas enquanto caminha. Flutue sobre um mar de flores mesmo nos períodos mais difíceis da vida. Esteja sempre perfumada e exalando frescor.
Aplique este produto e você será mais bela ainda. Seja dócil e complacente. Sorria o tempo todo, mas não gargalhe. Seja interessante, sem ser desafiadora. Doe-se. Mantenha sempre uma aparência tranquila. Expresse seus sentimentos com amabilidade. Não seja “histérica”. Faça somente o que lhe é permitido. Saiba colocar-se “no seu lugar”. Seja forte, sem ser bruta. Seja “naturalmente vaidosa”. Seja uma boneca, uma princesa…
É um fardo bastante pesado.
Despir-se da feminilidade pode parecer bastante assustador, pois temos a falsa sensação de segurança, de pertencimento, quando seguimos estes moldes. Estamos tão acostumadas à imagem do “ser mulher”, que não encontramos tempo para conhecer, de fato, a mulher que existe debaixo de toda esta parafernália.
Mas, talvez, este seja o exercício mais importante para realmente existirmos, em toda nossa plenitude. Libertar-se das amarras, dos padrões, das expectativas, é um ato urgente e revolucionário.
Imagem: Game of Thrones – Série da emissora HBO
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