Ser mulher não é fácil. É cansativo, exige um esforço fora do normal para sublimar a quantidade de coisas escrotas que temos que aguentar em todos os lugares que frequentamos – em reuniões de família, na rua, no trabalho, nos consultórios médicos e hospitais, em restaurantes, bares, parques, praças, academia….
Além das opressões, sofremos pressões de todos os lados, para sermos perfeitas, belas, encantadoras, fortes (sem sermos agressivas, claro), inteligentes, sensuais, e tantos outros adjetivos que nos forçam a incorporar à nossa personalidade e aos nossos corpos, isto, é claro, se quisermos o benefício de sermos tratadas com o mínimo de “””””dignidade””””” (perceba o exagero nas aspas, bastante intencional para enfatizar o quanto isto nos faz falta, independentemente do que façamos).
A cada dia surgem mais e mais relatos de mulheres que sofrem abuso, assédio, desrespeito, que são menosprezadas, silenciadas e caladas. Que são mortas por viajarem sozinhas. Que são forçadas a servirem de objeto sexual em troca de água e alimentos. Que são vendidas a homens mais velhos antes mesmo de se tornarem “mulheres”. Vivemos coisas grotescas, que nos levam a crer que a culpa é nossa, que somos menos humanas que os homens.
Somos tratadas com menos apreço, simplesmente por existirmos, e mais nada. E esse tipo de coisa não é novidade, embora o mundo todo pareça fazer vista grossa e achar normal absurdos como feminicídio, mutilação genital, escravidão e turismo sexual, casamento de homens mais velhos com crianças, etc. e etc.
Também não é novidade para ninguém, em pleno 2016 e em meio à revolução digital em que vivemos, que o feminismo está ganhando força e que nós mulheres estamos rompendo, pouco a pouco, com os estereótipos de gênero. Continuamos reivindicando o direito de existir sem medo, sem imposições absurdas sobre nossas vidas, sem ter que escolher entre uma calça ou um shorts porque essa pode ser, literalmente, uma decisão de vida ou morte.
E tudo isso parece não importar para a grande maioria, neste dia tão emblemático da luta feminina contra a opressão e a desigualdade, porque o capitalismo se apropriou desta data para tirar sua legitimidade e o peso de tudo o que ela representa – assim como sempre acontece com diversos movimentos sociais e políticos, bem como datas religiosas, que acabam por se tornarem modismos e se esvaziam de seu sentido principal.
Achamos que o dia internacional da mulher é uma data para presentear as mães, parceiras, irmãs, amigas, assim como acreditamos que a Páscoa é uma data para dar chocolates, ou o St. Patrick’s Day é um dia para lotar os pubs e tomar chopp verde, ou que o 1º de maio é apenas um feriado bacana pra descansar a cabeça e gastar dinheiro no shopping, em viagens ou com entretenimento. Resumindo: tudo se transforma em desculpa para você ajudar os grandes a encherem seus bolsos.
Talvez você não saiba, mas hoje, 8 de março, não é uma data comemorativa só porque nós mulheres somos “lindas, fortes, a luz do mundo, mães, cuidadosas, carinhosas, supremas, magnânimas”, como muitos textos teimam em dizer. Admito que é legal ser reconhecida por minhas qualidades em uma data que diz respeito a nós, mulheres, mas não é disso que se trata o Dia Internacional da Mulher.
Esta data foi estabelecida como um dia de luta, após um trágico incidente com operárias de Nova York, em 1911. Em uma tarde de sábado, em meio a um turbulento cenário de conflitos entre operários e patrões da indústria têxtil, “146 trabalhadores, dos quais 17 eram homens e 129 eram mulheres e meninas – 90 delas se jogaram pelas janelas do prédio. A maioria das jovens era de imigrantes, tinha entre 16 a 24 anos e trabalhava em condições desumanas. Seus salários equivaliam a um terço do recebido pelos homens, enfrentavam jornadas de trabalho extenuantes e não tinham condições mínimas de segurança”. (Trecho tirado deste texto excelente da Daniela Lima).
Esta tragédia incitou debates sobre igualdade, inspirou e motivou movimentos sociais pelo direito das mulheres, e também foi um divisor de águas no que diz respeito à luta e à visibilidade do movimento feminista.
Agora, eu pergunto a você, caro leitor: o que isso tem a ver com flores e elogios e os estereótipos que anexam a nós neste dia? A resposta é óbvia: absolutamente nada. Como já disse anteriormente, o mundo em que vivemos é movido por interesses financeiros, controlados, majoritariamente, por homens.
Estes senhores não aprovam o levante das mulheres contra seus abusos, e, enquanto lutamos pelo direito básico de existir sem sermos objetificadas e desumanizadas, eles contra-atacam nossos esforços com a mistificação da mulher, com o endeusamento do estereótipo da donzela frágil que precisa ser resgatada. Ou então o da mulher forte, independente e decidida, mas que sabe bem o seu lugar.
Durante trezentos e sessenta e quatro dias do ano, somos repudiadas, silenciadas, tratadas como seres inferiores, mas, em um dia do ano, temos uma enxurrada de elogios e flores e mensagens com conteúdos melosos em todos os lugares… Como se estas migalhas saciassem nossa fome por igualdade e justiça. Como se fôssemos dignas de respeito e admiração apenas neste dia, e apenas da maneira que convém aos outros.
Eu sou uma mulher de sorte, uma exceção. Tenho um marido incrível, que me ama, me respeita, me aceita e me apóia em tudo e busca sempre desconstruir suas visões. Tenho um pai carinhoso e que sempre me deu liberdade para ser quem eu sou. Tenho amigos que procuram repensar suas atitudes machistas. Pude estudar, trabalho com o que gosto e jamais precisei me silenciar por este ou aquele motivo. Vivi um relacionamento abusivo, mas consegui escapar dele fisicamente ilesa, coisa que não acontece com a maioria.
Eu sou uma exceção, e talvez você que me lê agora também seja, ou (infelizmente, e muito provavelmente) talvez não. Isto não importa, na verdade. O que importa mesmo é a gente não esquecer de toda a nossa história, das lutas, das mulheres que morreram para que pudéssemos ter a liberdade de fazer o que bem quisermos das nossas vidas.
Que a luta continue. E, quando a esperança se esvair, que o abraço de uma irmã, mãe, amiga, companheira, ou mesmo de uma desconhecida, possa te dar forças para seguir em frente. Juntas, sempre!

Imagens: Getty Images, Popular Resistance e Cheyenne Federiconi
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