Nada é apenas o que se vê

Há um universo escondido em tudo o que existe na imensidão do infinito.

Cada pequena pedra, cada botão, livro, janela, tijolo, alfinete, tudo carrega em si muito mais do que a matéria pode revelar por si só. Para as mentes curiosas esse universo anseia por ser explorado, ou esmiuçado. E é assim que geralmente vejo as coisas.

Muito além dos átomos, elétrons e partículas estelares e subatômicas que formam tudo, as coisas têm uma história. Uma memória oculta de sua gênese.

Um disco girando, solitário, hipnótico, a agulha deslizando lentamente sobre o vinil como dedos que tocam com suavidade uma película de água parada, sem ferir, sem perturbar. A rotação precisa e compassada, o chiado das trilhas percorridas a cada segundo. O peso ideal daquele fino objeto metálico, que não risca nem distorce os sons, trazendo à vida algo tão inerte como uma música gravada. Não fosse por esse conjunto de coisas, uma vitrola seria apenas um item decorativo e as músicas seriam possíveis apenas tocadas ao vivo.

Observo essa roda plástica, que poderia servir para tantas coisas mas que, aqui, serve para alegrar, ou entristecer, ou propiciar o entretenimento puro e simples, ou até para incitar a reflexão, e me pergunto como é que o ser humano foi capaz de ter uma ideia tão genial como essa de registrar em linhas, numa circunferência, uma coisa tão volátil e pulsante como a música.

Desde os mais rudimentares dispositivos de reprodução sonora, à invenção do gramofone, à invenção da vitrola, e o advento das tecnologias digitais de gravação e transmissão de áudio, tudo isso só foi possível por que alguém decidiu que certas coisas precisam ser guardadas. Assim como alguém decidiu que precisamos registrar de alguma forma o que dizemos, dando início à prática da palavra escrita.

Geralmente observamos estes objetos sem analisar quem os inventou, de onde vieram, ou então sem levar em conta a genialidade que deu vida a algo tão complexo que, por vezes, olhamos com desdém ou sem muita consideração. E isso não se aplica apenas à vitrola, esta peça hoje considerada um item vintage, cool, moderno com um toque retrô, odiada por alguns, venerada por outros.

A gente pousa os olhos sobre algo e segue a vida, sem buscar o sentido da existência das coisas.

Estou aqui nessa sala, olhando esse disco girar sem cessar, percebendo que a agulha sabe exatamente quando parar e voltar para trás, e pensando em quantas horas de trabalho foram necessárias para que o inventor da vitrola – ou do automóvel, do violão, do descascador de legumes, da geladeira, do computador, do telefone, do chuveiro… – criasse esse utensílio que hoje nos parece tão banal e ultrapassado.

O círculo gira, roda, saltita entre a agulha e a base do toca-discos e minha mente rebobina as fitas da memória até o tempo em que eu fazia o mesmo com meus cassetes que levava dentro da mochila, na adolescência, com o auxílio de canetas e lápis, para economizar pilhas e continuar ouvindo as músicas que eu amava.

Vamos supor que todas as coisas do mundo tenham sido criadas e idealizadas por apenas uma pessoa, a qual chamaremos aqui de “o inventor”. O que aconteceria comigo se o inventor da vitrola tivesse desistido daquela ideia, ou se não tivesse se empenhado, passado noites em claro tentando resolver os problemas ou encontrar os materiais corretos para sua invenção?

O que seria do motorista de ônibus e dos passageiros que utilizam esse meio de transporte se o inventor desse veículo decidisse, em vez de continuar com seu projeto, ser um fazendeiro de maçãs? Se Thomas Edison resolvesse seguir outro rumo em sua vida, como seria a nossa vida nos tempos modernos?

Talvez alguma outra pessoa tivesse a mesma ideia em tempos diferentes, ou talvez tudo fosse completamente o oposto do que conhecemos. A música se perpetua através dos séculos graças ao lampejo criativo de um, ou dois, ou mil visionários que acreditaram ser possível arquivar um som numa fita ou num pedaço de qualquer material viável.

Hoje agradeço a quem sentiu essa urgência de criar uma maneira de eternizar a música, que me traz tantas sensações e alegrias, ou registrar tudo o que dizemos, sentimos e experimentamos através da escrita, essa minha paixão que não me larga.

E o disco continua a girar, a roda da vida segue seu rumo, enquanto, a cada instante, algo novo passa a existir. Isto que estou vendo ao meu redor, estas paredes, o teto, as prateleiras, os chinelos que vestem meus pés, a borracha que os compõem, a panela na qual fervo a água para o chá, o próprio chá, em si, tudo é fruto do trabalho de alguém. Impossível degustar o chá preto que tanto amo sem pensar na primeira vez em que nasceu a ideia de infundir as folhas da camellia sinensis em água quente para ver no que dava. Inevitável questionar como descobriram que a mistura de lúpulo e cevada daria origem à nossa tão amada cerveja. Impensável olhar para um bolo e dele comer uma fatia sem antes indagar quem se aventurou a misturar esses ingredientes pela primeira vez.

Dizem que a necessidade faz o engenho, mas de onde vem a necessidade? Quer dizer, é fácil deduzir que o homem que descobriu a utilidade da roda, ou a inventou, estava buscando uma forma de simplificar sua vida, ou maximizar seus esforços. É simples concluir que as invenções “úteis” surgiram da necessidade de melhorar algum aspecto da vida, ou da vontade de tirar algum proveito, ou obter vantagem ou benefícios.

Mas, e as coisas que não são, necessariamente, úteis?

Acho que estamos meio condicionados a acreditar que a existência de algo é válida somente se tiver uma utilidade que se pode ver em resultados, lucro, ou algum produto do qual é possível conseguir alguma renda, ou algo assim.

Para mim, a música permanece no topo da lista de coisas muito úteis e que carregam em si um propósito muito mais significativo do que qualquer mera lâmpada, chuveiro, colher, escorredor de macarrão, espremedor de batatas, secador de cabelos, mesa, cadeiras, armários, celulares…