Na minha família, a comida tem um papel muito importante. É através dela que nos conectamos, que contamos histórias e criamos memórias. Os almoços, lanches, cafés e jantares – e os lanchinhos, cafés da manhã, ceias, biscoitinhos vespertinos e tira-gostos noturnos – são e sempre foram rituais sagrados de partilha. Fartura. Cores, aromas, sabores cativantes.
Minha mãe e minha avó são mestras na arte de encantar pelo paladar. Quando eu era criança, costumava assistir à minha avó mexendo a massa do pão, sovando com as mãos com bastante força sobre a mesa de granito, a farinha formando uma névoa que tornava a cena quase sobrenatural. Até hoje, ela é aquela vovó da fartura, que prepara massas, bolos, pães, tortas e doces artesanais com gosto de carinho.
Meu pai, por sua vez, teve lá seus repentes de aventuras na cozinha. Os pães eram sua especialidade, bem como sorvetes e profiteroles. Ele também fazia muitos iogurtes, cultivava kefir e fazia com que esses processos se assemelhassem a truques mágicos. Era tudo muito incrível para minha compreensão infantil.
Com o passar dos anos, essa inspiração familiar me impeliu a aprender a cozinhar coisas diferentes e saborosas. Posso dizer, modéstia à parte, que cozinho bem. Porém, não sei por qual motivo, desenvolvi certo medo de receitas mais complexas, como pudim, manjar, suflê e pão.
Sim, o pão, alimento milenar sobre o qual foi construída a nossa civilização, o que simboliza a fé e o trabalho, que, mesmo com poucos recursos, era confeccionado diariamente nas casas dos ricos e dos pobres. O alimento mais democrático e unificador de todos, não à toa usado como metáfora para o corpo de Cristo na religião católica.
Foram muitas as vezes em que ensaiei fazer um pão. Em uma dessas tentativas (pseudo-tentativas, pois nunca foram concretizadas), fiz uma receita de liquidificador com fermento químico, que ficou igualzinha a uma torta salgada sem sabor. Um pão com defeito, que virou um bolo salgado no dia seguinte, e que não é contabilizado como uma tentativa válida ou bem-sucedida.
Trinta e oito anos de vida sem produzir nenhum pão. Que tristeza!
Pode ser que eu tenha ficado emotiva com essa coisa de isolamento, pode ser que eu esteja com saudades da família, da vó, das festas e reuniões às quais nem sempre dei o devido valor, só sei que hoje decidi que iria fazer um pão, sem medo de errar.
Procurei uma receita fácil, vesti o avental e separei os ingredientes. Estava assistindo no YouTube à vigília pascal no Vaticano, um retrato histórico e triste deste ano que nos distancia dos queridos. O Papa tinha uma expressão exaurida, um olhar triste. Não parecia um sábado santo, mas um dia de penitência, como o dia de ontem, em que a igreja relembra a morte de Jesus na cruz.
Enquanto misturava a massa, ouvia os cantos gregorianos ressoarem na opulenta construção e o sermão do Papa Francisco, que, em determinado momento, disse: “é de pão que precisamos, e não de metralhadoras”. Foi uma coincidência bonita e me fez sentir uma pontinha de esperança, a mesma sobre a qual o Papa também falou mais adiante, a coragem de enfrentar a noite escura, os medos e os tempos de provação.
Desnecessário dizer, para uma escritora como eu, ligada nas sincronicidades da vida, tudo é metáfora e simbologia. Meu pão demorou um pouco para crescer, não ficou cem por cento modelado como eu gostaria, mas quando o coloquei no forno, tive certeza de que nunca me esqueceria deste dia de hoje, em que, no meio das incertezas, das saudades, das tristezas e da desesperança, tomei coragem e trabalhei o pão. Confiei no poder do meu braço para sovar a massa, na potência dos ingredientes e na ação do fogo. Por algumas horas, senti que era possível desapegar dos medos e permitir que o universo faça sua parte, cuidando de tudo aquilo que foge do meu controle.
Neste instante, enquanto escrevo esta postagem, um carro da Igreja passa pela avenida, abençoando as casas, seguido por muitas palmas e gritos de alegria que saíam de dentro das janelas. Mesmo quem não tem religião e não crê em Deus pode reconhecer que esses pequenos sinais são capazes de nos trazer esperança em tempos tão difíceis.
Para mim, elaborar a própria comida é um sinal de liberdade. Fazer uma receita complexa, que sempre me desafiou, e obter sucesso logo de cara é uma grande vitória para mim.
Este sábado santo ficará marcado para sempre como o dia em que pude dizer: habemus panem. Aleluia!
Foto: Victoria Shes via Unsplash