Culpa, ócio e produtividade em tempos de isolamento

Graças à minha educação e vivência no catolicismo, a Sexta-feira Santa sempre foi um dia em que faço poucas coisas, em que fico voltada a contemplar e orar. Minha mãe sempre dizia que esse é um dia de contrição e de luto pela morte de Cristo, e não de festas ou trabalhos desnecessários.

De fato, hoje o recolhimento e a contemplação moveram meu dia, e eu fiz muito menos coisas do que planejei ao longo da semana. Ainda assim, realizei as tarefas domésticas, cozinhei, cuidei de mim e agora estou aqui escrevendo, conforme prometi.

Então, por que me sinto culpada?

Desde o início do meu período de isolamento social, há vinte e cinco dias, tenho sentido uma necessidade muito maior de me manter ocupada. Trabalho no horário costumeiro, das 8h às 18h, faço freelas para complementar o orçamento, publico conteúdos nas redes sociais, leio, participo de encontros online, limpo a casa, arrumo armários; enfim, procuro me manter produtiva.

A princípio, isso me confortava. Até dava para fingir que não estávamos passando por esse absurdo momento e que a rotina seguia sua normalidade: a correria, os prazos, o cansaço, a sensação de dever cumprido. Com o passar dos dias e das semanas, no entanto, comecei a notar sinais de esgotamento – não por estar entediada, mas por não me permitir simplesmente parar e absorver o fato de que estamos vivendo uma pandemia, um ciclo que pode significar a ruptura da vida como a conhecemos. O corpo inteiro, o sistema nervoso, a alma e o espírito em modo de emergência, atentos para o que virá a seguir. Isso é exaustivo, consome nossa energia e mina a nossa capacidade de concentração e até mesmo o nosso rendimento nas atividades cotidianas.

Mesmo tendo plena consciência de que o momento é de exceção, nos cobramos e somos cobrados como antes de tudo isso explodir.

A culpa por estar ociosa é algo que me persegue. Com tantas opções de lives, aulas online, grupos de yoga e dança fit, cursos e livros gratuitos, textos, informações e possibilidades de aprimoramento, ficar à toa é algo que soa estranho, proibido, subversivo. É um motivo de culpa, e tenho certeza de que muitas pessoas compartilham desse meu sentimento.

Estamos ficando angustiados por não sermos produtivos o bastante durante uma quarentena.

Uma pandemia rolando em todo o planeta, e nós aqui, sentindo culpa por não saber lidar muito bem com essa situação e por não produzir, em quantidade e qualidade, o que é esperado de nós. O quão pirada está nossa sociedade?

Bem, está pirada a ponto de achar que a economia, o lucro e as vendas são mais importantes que a preservação das vidas. Pirada a ponto de aproveitar uma pandemia para lucrar com produtos essenciais, como EPIs médicos, álcool em gel ou 70º, máscaras e opções infinitas de delivery. Realmente, o mercado se apropria de tudo, transformando crises humanitárias em oportunidades de faturar ainda mais.

Tempo é dinheiro, até durante uma epidemia com potencial apocalíptico.

Pois hoje, quando me peguei sentindo essa culpa por não ter produzido o bastante, verbalizei isso ao meu marido, que retrucou: “Mas, Zam, hoje é seu dia de folga, não é pra fazer nada mesmo”.

Sim, hoje é um feriado. No passado, eu me contentava em pensar na vida, ir à celebração da paixão de Cristo, ficar em casa e esperar pelo sábado de aleluia. Por que hoje, justo neste momento tão delicado e intenso, e em pleno feriado, sinto o peso da culpa?

Precisamos reaprender que o ócio é necessário, que não tem problema ficar à toa, que produtividade não é régua para medir se somos pessoas boas ou ruins. Nosso valor não é medido por quanto produzimos para os clientes ou para o patrão, ou por quantos itens conseguimos riscar da lista de coisas a fazer. Isso tudo faz parte da lógica do consumo, até mesmo essa ideia de fazer listas e se planejar, se organizar para que o dia “renda”.

Por que essa dificuldade tão grande em simplesmente viver? Existir já é um trabalho colossal, um esforço de espírito e matéria. É produzir, também: nossas células estão o tempo todo trabalhando e produzindo algo para nos manter vivos.

Estar e permanecer viva é uma meta de produtividade que já ocupa boa parte do meu tempo – apenas não sou paga por isso.

Ao final desta Sexta-feira Santa, firmo um compromisso comigo e com Deus: ser mais, contemplar mais, transcender mais. Tiro, então, essa culpa dos ombros; já tenho muitas cruzes para carregar nesta via crucis que é viver.

Quantas vezes for preciso, irei me perdoar por não entregar ao mundo e ao mercado cem por cento de produtividade, cem por cento do meu tempo e da minha existência. Produzir é bacana, é interessante e necessário, mas não é tudo, não é o que nos define, muito menos quando a nossa maior preocupação consiste em sobreviver.


Foto: Robert Bye via Unsplash