Oito horas por dia

Noite. Descanso, restauração, antídoto para o cansaço do dia. As luzes se apagam, o sol foge de nós, a mãe nos cobre dos pés ao pescoço para afugentar o medo dos monstros. Noite é refúgio para o corpo e a mente, é o suspiro de alívio, olho de gato piscando na porta do quarto, colchão de plumas que põe para dormir os pensamentos.

Menos os meus. Eles são apressados, me ultrapassam na corrida das horas. Chego a pensar que não nasci para dormir ou repousar. Talvez porque a paz também fuja de mim quando me deito.

Na noite escura, busco me esconder do medo, que espreita pelas sombras, nos cantos dos quartos, aguardando o momento certo de saltar sobre minhas costas e transformar meus passos em pedras.

Tudo se intensifica nesse silêncio, em que existo, apenas eu e os ruídos do meu corpo, da rua, do prédio. A madrugada é elástica, muda, música que se ouve embaixo d’água.

Enquanto espero o sono me visitar, com a cabeça recostada em dois travesseiros, o pior sentimento de todos me assalta: a iminência da morte. Uma suspeita que me faz transpirar, remexer o corpo, manter os olhos abertos para não correr o risco de cair no sono eterno. Todas as luzes de emergência disparam nas células que me compõem e deixo de ser mulher para me transformar em floresta devastada por tornados. As raízes são arrancadas do solo, sou jogada de um lado a outro da mente, um labirinto sem muros, do qual não consigo sair.

O peito incha. Sobe e desce, sem ritmo. As veias pulsam no pescoço, o sangue expande tecidos, órgãos, fibras, pele. No colo e nas costas, um filete fino de suor escorre e empapa a roupa, aos poucos. Respiro com dificuldade, um batuque de atabaques comprimido por trás do esterno, uma orquestra de percussão desafinada, que fere os tímpanos e me ensurdece, com zumbidos intermitentes.

Nada nesse instante é agradável, fresco, tranquilo. É um calor gélido, algo inominável que percorre a alma, sussurro jocoso de um espírito que se alimenta da minha dor. Pressinto o pior – o pânico se instala nos ombros, curvados e pesados, e me impede de adormecer. Desespero. Preciso dormir, preciso descansar, amanhã levanto cedo, como vou poder trabalhar se não fechar os olhos, pelo menos?

Já são três horas da madrugada. Tento sincronizar com o ponteiro do relógio as palpitações que o coração produz. Lembro-me do que a doutora Laís disse: oito horas por dia de sono, no mínimo, para poder curar a mente. Oito por dia, ou por noite? E isso importa? Tento me recordar da última vez que a noite foi generosa comigo e me embalou em seus braços de breu, mas o pensamento se embrenha em lugares obscuros, densos.

Calafrios. Os pelos eriçados dos braços e pernas avisam que esse é só o começo. Depois, virão os tremores, a boca seca – sede de quem cruza desertos há anos. Virá, também, a ânsia, acompanhada das lágrimas e da sensação de total impotência. A angústia de não ter controle sobre meu próprio corpo, de ser privada de uma função natural – e por qual motivo? Nunca sei.

O medo me encara, solta a maior das gargalhadas, com voz afiada e sombria. Já sei o que ele vai me dizer: eu venci. Quase todas as vezes ele vence, de todo modo. Se bem que já não importa mais ganhar ou perder nesse jogo sem graça. Quero apenas dormir, sorrir, sentir, viver sem esse aperto que me acompanha dia após dia.

Começo a pensar em tudo isso, ainda desperta, o lençol enroscando nas pernas, ensaio para um espetáculo circense que jamais encenarei. Sou patética, eu sei – de tanto sentir medo, danço apenas na cama, quando não consigo adormecer.

O coração ainda pulsa desenfreado. Tento contar quantas batidas são, mas me perco no caminho. E se ele parar enquanto conto? Preciso me distrair. Vou até a cozinha, engulo um, dois, três copos grandes d’água. Lavo a louça esquecida. Procuro ser silenciosa, mas sei que não acordarei quem navega no oceano dos sonhos, pois já estão muito distantes de mim.

Volto para a cama, vencida. Ligo o kindle e leio alguns parágrafos, mas a mente, arredia, retorna ao labirinto, um transe do qual retorno ao notar a claridade que entra, tímida, pelos vãos da janela.

Amanhece e meus olhos ardem. Não sei se dormi, nem por quanto tempo. Será que tudo foi um sonho?

Bem, o que importa? Na noite desse hoje-amanhã, provavelmente acontecerá tudo outra vez.


Foto: Bruno van der Kraan via Unsplash