Das coisas que vivem

Aroldo é o nome da suculenta que me faz companhia na mesa do escritório. Desconheço o nome científico e botânico dessa planta, que carinhosamente chamo de planto, mas posso dizer que ele é um pedaço de vida verde, lutando para sobreviver em um ambiente hostil. Assim como eu. Quer dizer, eu não sou verde, mas sou um pedaço de vida, embora eu ache que nunca fui inteira: minhas partes se espalham por labirintos, eu as persigo desde que nasci, e, vez ou outra, sinto-me cega. Enxergar vida nesses caminhos é coisa rara, porque a solidão é o que impera.

Ainda sobre o Aroldo: ganhei essa plantinha de uma amiga querida, que também é sensível às intempéries corporativas. Digamos que foi uma daquelas coisas capazes de salvar a rotina, que nos fazem lembrar do quanto a vida vale a pena, apesar de tudo.

Nos dias de sol, e também nos de chuva, coloco o Aroldo para respirar perto da janela do nosso cantinho do café, um dos únicos lugares da empresa no qual consigo ver a rua, as árvores, a vida do lado de fora. Ele parece curtir esse passeio – sempre fica mais viçoso no dia seguinte, como quem ganha nova vida após uma enfermidade. Quando estou triste ou irritada, olho para o Aroldo, que se espicha para o alto, deitado no vaso em forma de sapo, e sorrio em silêncio. Esse ser, com nome de gente e definido como um verbo, é uma coisa que vive e me sustenta nos dias de luta.

Assim são as plantas, todas elas: pequenos lembretes de que se pode vicejar mesmo em ambientes cinzentos.

Planta é coisa viva, portanto é fácil notar que uma suculenta é algo que vive. Mas, e quanto aos objetos inanimados, que repousam em estantes, que sabem de nossa memória – melhor ainda, que a criam e inventam! – e, por sorte, sobrevivem para além de nós?

Falo de roupas, toalhinhas de crochê, perfumes, vasos, vidros, quadros, móveis, sapatos – aquilo que pertenceu a alguém e agora faz parte de nós. Todas as relíquias familiares: os anéis de ouro, as jarrinhas e louças que ganhei da minha avó, um antigo pilão pequeno de madeira que meu marido ganhou da avó dele, imagens de santos, fotos de infância.

Essas coisas vivem, pois carregam consigo o pulsar das memórias de quem já as possuiu, e emanam energia nos novos locais onde passam a repousar. Os livros também têm essa energia de quem respira, matéria orgânica feita de palavras e ideias. Ler é como fazer uma transfusão de sangue, tomar um soro revigorante na veia após sofrer de uma enfermidade que nos faz perder o brilho. Estar rodeada de bons livros também é garantia de vida.

Tenho me perguntado bastante: por que a vida existe? Por que eu existo? Afinal, existir em 2019 não tem sido tarefa simples, e desconfio que no ano que vem as coisas serão iguais, ou ainda piores. Dia desses, uma amiga foi até o estúdio tatuar com o André a seguinte frase da canção Cajuína, de Caetano Veloso:

Existirmos: a que será que se destina?

E quem é que sabe, afinal? Acho que estou um pouco farta de tentar saber. Talvez esse excesso de questionamento que costuma me perseguir seja apenas a voz dos meus transtornos, ou o sussurro do cansaço de quem não consegue realizar nem mesmo o mais singelo dos sonhos. O cansaço de existir em um mundo que me consome, que me transforma em coisa quase não-viva, em matéria turva, cinza e sem brio. Como se eu fosse uma suculenta que morreu afogada porque um humano não soube fazê-la permanecer verde, crescendo e feliz. Ou então, que foi podada – ou, na linguagem dos cultivadores dessas espécies de planta, decepada – e não conseguiu resistir às mudanças, sem ter força suficiente para aprofundar suas raízes. Como se eu fosse um tronco de árvore, seco e quase morto, tomado por musgos e fungos e cogumelos – ele próprio, quase uma vida inexistente, porém servindo de alimento e morada a tantos outros seres e coisas cuja força é bastante para mantê-las despertas. 

Eu não me sinto desperta; pelo contrário, graças ao desgosto e a tudo que abandono diariamente para poder continuar sendo aceita pela sociedade e sobreviver, pagando os boletos; graças à necessidade de dinheiro que me empurra para longe do que mais amo fazer (do meu sol, da minha clorofila); graças aos remédios que me distraem dos reais problemas e que cumprem sua função de me transformar em um zumbi funcional, meio dopado, meio anestesiado, quase-feliz-quase-consertado, eu estou adormecida.

Vivo perambulando em coma induzido, até que se descubra uma maneira de reverter a falência múltipla que eu mesma causei em meus órgãos de sonhar.

Ainda assim, há, comigo, inúmeras coisas que vivem. E é graças a elas que continuo seguindo em frente, eu, também, uma coisa que, sabe-se lá como, ainda possui uma fagulha de vida, embora frágil e escondida. Será que, assim como as suculentas, as relíquias, os objetos e livros que dormem nas estantes, eu também serei capaz de, um dia, emanar energias avivadoras nos lugares por onde passarei? 

Hoje, sei que não. Tenho muito ainda a ressuscitar dentro de mim. Talvez com a ajuda do Aroldo e de tudo o que vive nas minhas estantes, eu consiga viver antes que a morte venha me buscar para a travessia final. Enquanto isso não acontece, acho que o jeito é pensar como Macabea, personagem de A Hora da Estrela, livro tão doce e triste da minha musa Clarice Lispector:

– Já que sou, o jeito é ser!

Imagem: Florencia Potter via Unsplash