A literatura não promete felicidade alguma — pelo menos não do tipo clássico, ou seja, o tipo imaginário — e não nos oferece garantias de finais felizes, nada disso. Ela nos amplia a vista de casa, nos mostra o outro — igual e diferente de nós — e exige que nos comparemos a ele, que nos analisemos e, de alguma forma, promovamos reformas internas.
– Luís Henrique Pellanda
Já faz algum tempo que penso em escrever sobre o poder da Literatura. Não só como ferramenta de expressão, ou como um meio de documentar os tempos em que vivemos, mas como um canal de redenção, uma experiência, algo de místico e sublime. Como diria meu amigo Francisco José Ramires, a Literatura proporciona vários dias salvos. Nesse sentido, ela nos redime de muitas coisas, inclusive da solidão, do tédio, das ausências e pressas do cotidiano.
Acho que demorei mais do que deveria, ou do que queria, para produzir esse texto, pois vivia imaginando que, por mais que eu escrevesse, jamais conseguiria colocar em palavras o que de fato a Literatura me proporciona. Digo Literatura, com “L” maiúsculo mesmo, que é para refletir a devida importância a essa forma de arte, essa “coisa” tão digna, tão necessária à minha existência e presente em aspectos tão diversos de minha vida.
E não só da minha. Se eu aprendi alguma coisa nos últimos dois anos, mediando aqui em São José dos Campos os clubes de leitura Leia Mulheres e Café com Leitura, foi que a Literatura é um ponto de convergência. Por causa dos livros, nos encontramos, nos despimos de preconceitos, baixamos a guarda para prestar atenção às palavras e impressões de outros leitores. Pelo amor à Literatura, somos capazes de nos calar e escutar o que nossos semelhantes têm a nos revelar – sobre a história, sobre suas vivências, sobre eles próprios.
A experiência de “ler em conjunto” é um empurrãozinho extra no caminho de reconhecimento, de compreensão do mundo. Se, na leitura solitária, praticamos a empatia, repensamos conceitos e tocamos em importantes questões que nos tiram o sono (ainda que elas nunca sejam respondidas), ao ler coletivamente isso se intensifica e somos transportados para um lugar de espera, de reflexão, de profundo mergulho no texto e em nós mesmos. O cenário, as situações, as personagens e os conflitos relatados na ficção se revelam tão reais quanto as nossas próprias vivências, e somos capazes de encontrar pontos comuns a toda vida humana. A poesia traduz o indizível, inspira um coro de vozes silenciosas, uma plena experiência catártica coletiva.
Cada leitura é como um novo passo para nos fazer compreender que não importa entender, e sim vivenciar. A vida não é algo compreensível, mas sim esse desdobramento de palavras, ações, resultados, improbabilidades e coincidências. É um caminho cheio de retornos, é dizer “acho que entendi”, mas ter que voltar cinco páginas para compreender a fundo as metáforas pensadas pelo autor.
Ao final desse processo, a pessoa que bateu os olhos na primeira página do texto não é mais a mesma; ela, agora, tem em si fragmentos de tantas vidas, tantas emoções, tantos olhares, que ela precisa de um novo nome. Após cada livro, se renova, se torna menos individual, ganha ares de congregação.
Nesses renascimentos, somos salvos de nossos fantasmas, de nossas insistências, somos redimidos pelas palavras. A Literatura é capaz de nos salvar, ainda que seja apenas do isolamento, ao nos conduzir até o encontro com almas irmãs, ao nos congregar a pessoas como nós, que buscam o desconhecido.
Pode parecer estranho falar que a Literatura reúne, que congrega almas semelhantes, mas é essa a experiência que os clubes de leitura me proporcionam. Esses encontros nunca se resumem a debater apenas os livros de forma fria e técnica – até porque a Literatura jamais poderia ser classificada como algo “frio” ou “técnico”. Literatura é alma feita de papel e que não reconhece a urgência do tempo. É “coisa” exageradamente humana.
Sem contar que, pelo simples ato de ler um livro, podemos nos conectar com, pelo menos, duas pessoas diferentes – o autor e outro leitor de qualquer parte do mundo que, naquele mesmo momento, passeia por aquela história. Além, é claro, da conexão que fazemos com a personagem, fictícia ou não (e essa ambiguidade é proposital, pois tanto a conexão quanto a personagem podem ser reais ou imaginadas).
Essas conexões que criamos com outros leitores, com quem escreve a história, com as personagens e com todo o universo dos livros também servem para nos emprestar novos olhares sobre a vida e sobre as palavras. E é engraçado como a percepção dos outros nos ajuda a enxergar aspectos desconhecidos sobre nós mesmos, sobre o lado escuro de nossa lua. Muitas vezes, ao escutar uma colocação de alguém de fora, passo a encarar o texto de forma diferente, talvez menos concreta, menos segura de si, mais permeável.
Como escritora, sinto-me privilegiada por poder compartilhar meus pensamentos e sensações acerca de um livro, sobretudo por saber, também, que minhas palavras podem ter um efeito parecido e promover debates, encontros, transformações, reflexões. Acho até que escrevo para isso, e por isso, nessa insistente procura por palavras que confiram sentido ao mundo e a tudo o que nos cerca.
A consciência (ou será a esperança?) de que palavras podem mudar o mundo me faz persistir no caminho da Literatura.
Peregrina das páginas, em cada paragem me encontro com outros romeiros, recebo as bênçãos, os presentes, admiro junto com eles as paisagens presentes durante a jornada nessa montanha repleta de obstáculos. Literatura é ar rarefeito, sim, mas também vento que sopra os medos para longe. Literatura é arma de afeto, é chuva fresca em nossas áridas vidas, é verbo que cria e move universos.
Que todos nós que amamos a Literatura possamos, cada vez mais, espalhar por aí a ideia de que é possível, sim, mudar o mundo, com palavras, ideias e pessoas.
Imagem: Jaredd Craig, via Unsplash.
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