Uma breve reflexão sobre preconceito literário

Por que (ainda) torcemos o nariz para os livros clássicos e mais populares?

Eu amo ler livros de fantasia, tenho boa parte da coleção do Tolkien, todos os livros do Harry Potter e de Game of Thrones. Gosto de chick-lit, se for de qualidade. Aprecio textos que me ajudam a superar momentos difíceis. Procuro ler ao menos um livro clássico todos os anos. Sou fã de livros de filosofia, pois me conduzem ao mundo das ideias de forma ordenada e desfazem os nós da minha cabeça.

Mas, nem sempre fui assim. Até pouco tempo atrás, eu costumava reproduzir um discurso muito preconceituoso sobre as preferências literárias de algumas pessoas.

Quer dizer, os gostos dos outros não deveriam nos incomodar tanto. Talvez nos incomodem, pois queremos colocar a literatura em um pedestal desnecessário – como eu fazia.  Quando estava na faculdade, acreditava que todos deveriam começar a cultivar hábitos de leitura com títulos clássicos, que fazem parte do cânone adotado pelo mundo acadêmico. Como eu era arrogante! E contraditória, pois justamente nesse período eu devorava os casos de mistério de Agatha Christie sem parar.

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Com o passar dos anos, me propus a ler alguns livros fora da minha zona de conforto. Ainda durante a graduação, li alguns títulos do Paulo Coelho, comecei a ler os primeiros volumes da saga do Harry Potter e compreendi que, para ter uma opinião acerca de um livro, é preciso ter lido o texto. Como podemos julgar alguma coisa sem conhecê-la, não é mesmo? Obviamente, mordi a língua e hoje sou fã da série de livros da J.K. Rowling, embora continue detestando o Paulo Coelho.

O importante é frisar que: eu não gosto de Paulo Coelho. Mas, se você gostar, tudo bem. Afinal de contas, é fato que ele faz sucesso entre os leitores, faz parte da Academia Brasileira de Letras, ele é o autor brasileiro vivo mais traduzido para outros idiomas. E isso não vai mudar só porque eu torço o nariz para seus livros. Muito menos se eu ridicularizar alguém por gostar do que ele escreve.

Mas, infelizmente, é isso o que acontece. Muitos de nós dividimos as pessoas em leitores dignos e leitores indignos. 

Se uma pessoa gosta de ler, mas não se interessa pelos livros certos (o que é, afinal, um livro certo, ou bom?), certamente sofrerá algum tipo de julgamento. De modo geral, este tipo de preconceito engloba os títulos da baixa literatura – autoajuda, livros esotéricos ou religiosos, literatura hot, livros que estão na moda (como se isso fosse algo ruim), livros de escritores desconhecidos, apenas para citar alguns exemplos. Até os gêneros de literatura fantástica e romances policiais são (ou pelo menos já foram) considerados como subgêneros, indignos e pouco relevantes.

Em contrapartida, se você se interessa pelos livros consagrados, pelos grandes nomes da literatura, pelos títulos considerados cult, então você faz parte de um seleto grupo de pessoas intelectualmente abençoadas. Seres iluminados. Dotados de uma capacidade de compreensão acima da média. Leitores de metáforas, fluxos de consciência, filosofias complexas. Literatura erótica, e não hot. Palavras complicadas, romances históricos, escritores russos. Os paladinos da literatura.

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Este é um dos preconceitos mais comuns, que transforma a leitura em algo reservado a algumas pessoas dignas. Que contempla os gostos refinados, que não tem lugar para a literatura como forma de entretenimento.

Há também o preconceito contra os livros clássicos. Por terem uma linguagem bem distante da nossa realidade, por não retratarem o mundo contemporâneo, ou simplesmente por sermos forçados a ler estes títulos durante o ensino médio ou para os vestibulares – a questão é que costumamos torcer o nariz para Eça de Queiroz, Machado de Assis, José de Alencar, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, entre tantos outros gênios, sem nunca dar uma chance às suas magníficas histórias.

Acredite: reler um livro da época da escola pode ser uma experiência mágica. Muitas vezes, não temos maturidade suficiente para compreender certas coisas que estão sendo retratadas ali, ou achamos o texto maçante, pois somos adolescentes e queremos nos divertir, queremos algo que prenda a nossa atenção.

É compreensível. E, nesse ponto, acho muito válida a quantidade de livros para jovens adultos que existe por aí. Porque um leitor não precisa ser forjado no inferno, iniciando sua jornada no mundo dos livros com A Odisseia ou Grande Sertão: Veredas aos dez anos de idade. Pode começar com uma leitura mais leve, mais próxima de sua realidade, com personagens mais fáceis de se relacionar e, a partir daí, desenvolver o hábito de ler diversos estilos.

A essa altura, é interessante levantar algumas questões:

  1. Ler qualquer coisa é melhor do que não ler nada?

  2. As pessoas que começam a se interessar pela leitura através de um livro considerado “fraco” ou até mesmo “ruim” podem ser cativadas pelos clássicos (por exemplo)? Ou estão fadadas a seguirem sempre aqueles tipos de leitura?

  3. O que torna um livro bom?

  4. Por que ainda menosprezamos os livros menos rebuscados, menos aclamados pelos críticos, mesmo que sejam muito bem escritos, com boas histórias, ou repletos de reflexões?

Vou deixar essas perguntas sem resposta. De propósito, para você refletir com carinho. Talvez mais para frente eu retorne com algum texto aprofundando cada um desses pontos, principalmente o número 3 – O que torna um livro bom?

Com certeza, depende de quem analisa. Hoje, penso que um livro deve ser bom para o leitor, e apenas para ele. Se um grupo de pessoas se identifica com aquela história, ou com o texto não-ficcional, então há espaço para ele no mundo.

Depende também de como e quando analisamos a qualidade de um livro. Como já mencionei acima, um livro pode ser ruim para você naquele momento da sua vida, ou pode ser bom porque te trouxe algum sentimento ou conforto em um momento difícil – como no caso dos livros de autoajuda.

E que mal há nisso? A literatura não é só o que você ou eu ou a Academia considera como literatura. Há leituras para todos os gostos e, tendo em vista que vivemos num mundo relativamente livre, é bom que seja desse jeito. Todo mundo tem preferências de leitura. Isso é absolutamente normal, aceitável e não há problema algum em achar bom um livro considerado ruim e achar ruim um livro considerado bom. O que não podemos fazer é catalogar as pessoas, como se fossem menos “leitoras”, ou menos qualificadas para julgar o conteúdo do que estão lendo, só por possuírem gostos ou hábitos diferentes dos nossos.

Confesso que demorei tempo demais para desconstruir tudo isso — acho que foi quando decidi, de fato, ser escritora, que percebi que esse pedantismo todo não nos leva a nada, e só dificulta a vida dos novos escritores. Sem contar que, em se tratando de literatura, entramos na velha discussão sobre o que é a arte, e essa discussão não tem fim.

A única maneira de julgar um livro é abrindo a primeira página e iniciando a leitura. Só assim é possível construirmos um modo crítico de pensar a respeito da literatura e do próprio mundo.

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* Imagens: Pexels