Resgatando o prazer de ler histórias sensíveis

No início deste ano, resolvi não fazer resoluções. Nunca as cumpro. Costumam compôr uma lista que serve apenas para aliviar a minha ansiedade, ou trazer uma sensação de dever cumprido (o de fazer a tal lista, e não realmente riscar os itens nela como feitos). A grande surpresa da vida consiste em deixar nossos desejos pairando no ar e saber quando tocá-los, transformando-os em realidade.

Porque, não devemos nos enganar, não existe desejo realizado sem ação.

Mas, voltemos. A tal resolução inexistente incluía ler mais. Não só em termos de quantidade de livros, mas da qualidade da leitura. Do tempo que levo para terminar uma história ou um texto, saborear as palavras, absorvê-las e incorporá-las ao meu imaginário. Sobretudo, ler mais histórias que me levassem a refletir, que me transformassem, e não apenas me distraíssem por alguns dias.

O cenário literário atual é uma areia movediça, onde predominam aventuras clichê e cinquenta tons de romances vampirescos. E é difícil demais encontrar esse tipo de texto que nos faz mergulhar em um mundo também nosso, em cujas palavras enxergamos a nós mesmos. Um livro com o qual podemos nos identificar, de fato.

Foi exatamente isto que encontrei nas duas histórias que inauguraram o meu ano.

A primeira leitura surpreendente foi A Música do Silêncio, de Patrick Rothfuss. Eu já sabia que seria uma viagem maravilhosa, porque o estilo do Patrick é primoroso. Para quem não conhece o autor, ele é o criador de uma das séries fantásticas de que mais gosto, As Crônicas do Matador do Rei, composta pelos títulos O Nome do Vento O Temor do Sábio, e também pelo terceiro que ainda não foi lançado.

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Auri e Kvothe, arte de Michelle Tolo

A Música do Silêncio conta a história de uma semana da vida de Auri, uma das personagens secundárias mais misteriosas e profundas do mundo de Rothfuss. Ela é introvertida, como um animalzinho ferido, à qual Kvothe, a lenda viva desta saga, se afeiçoa profundamente. Talvez justamente por compartilharem um passado de abandono, por conhecerem certas verdades que o mundo ignora e por saberem o valor das coisas, Kvothe e Auri se tornam aliados e amigos, mesmo trocando poucas palavras. O que eles comunicam sem dizer nada é o mais importante.

No livro escrito só para si, Auri não fala. Não há diálogos, apenas monólogos interiores da personagem, narrados em terceira pessoa. O autor nos conduz a uma viagem silenciosa através do mundo subterrâneo em que Auri vive, cuidando da ordem e da felicidade dos objetos (in)animados e aprendendo a aceitar as coisas como são.

Auri é, ao mesmo tempo, uma menina frágil e uma alma sábia. Ela parece conhecer os mecanismos daquele universo e segue rituais precisos para não permitir o rompimento da linha fina sobre a qual o mundo se equilibra. E passa sete dias em busca do presente perfeito para Kvothe.

O mais interessante é que a narrativa se afasta de todas as convenções ou fórmulas de romance. O próprio autor descreve, ao final do livro, sua insegurança a respeito do que os leitores iriam pensar – ele chega até a pedir desculpas. Isso só demonstra como esteamos desacostumados a ler obras de arte.

É bem difícil explicar a Auri se você não conhece o universo dessa saga. Embora seja difícil entender algumas peculiaridades do texto sem ter lido O Nome do Vento, acredito que seja possível, sim, se deleitar com a sensibilidade deste livro. A única coisa que posso dizer sobre ela e sobre A Música do Silêncio e sobre os outros trabalhos do Patrick é: leia. Agora. Apenas vá lá comprar e ler, não perca mais um minuto!

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Assim que terminei este livro, comprei um Kindle. Achei que seria um estímulo a mais para a pseudo-resolução-que-não-fiz, e, de fato, tem sido. Estou lendo três livros ao mesmo tempo, e, como o e-reader mostra os mais recentes assim que você o liga, sei exatamente onde parei. Ele também mostra o progresso da leitura, o que facilita o planejamento. É bem mais prático do que pegar o livro na estante, que às vezes esqueço de marcar com um marca-páginas. Claro que ainda tenho aproximadamente trinta livros físicos na minha lista de leitura, mas isso não vem ao caso.

Peço perdão por esta digressão, mas ela tem um motivo.

Quando comecei a navegar pelo site da Amazon, para adquirir alguns e-books, me deparei com o livro Pax, da autora Sara Pennypacker. A princípio, decidi não comprar. Parecia uma história meio infantil, meio clichê, meio sem graça. Mas a raposinha da capa me cativou, e me chamou, e eu fiquei pensando: Por que não?

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“Estou exatamente onde deveria estar, fazendo exatamente o que deveria estar fazendo. Isto é paz”. Imagem: Amazon.com

Ainda bem que não desisti. Pax conta a história de um menino e de sua raposinha. A autora alterna entre as perspectivas de cada personagem, o que ajuda a nos aproximar ainda mais de seus anseios, aflições e conflitos. É uma história simples, intimista, de leitura fácil e extremamente comovente. Fala sobre guerra e paz, dentro e fora de nós.

A história de Pax, contada a partir do olhar da raposa que, aos poucos, resgata o seu lado selvagem, é uma jornada de encontro. E Peter, o seu menino, quando foge de casa para resgatar Pax, na verdade, inicia uma caminhada intensa de autoconhecimento. É o tipo de livro que qualquer pessoa pode ler, em qualquer idade, e que tem muito a ensinar – sobre relacionamentos, sobre expectativas, paciência, amor, lealdade e amadurecimento.

Essas duas leituras deixaram em mim algumas lições:

  1. Um livro que se passa em um mundo de fantasia não precisa ser apenas sobre aventuras e missões e fadas, elfos, batalhas épicas e dragões. A verdadeira magia está na forma como o escritor consegue nos transportar para dentro de um universo.
  2. Eu preciso continuar lendo coisas mais edificantes. Às vezes me perco em textos filosóficos demais, políticos demais, nervosos demais. Ler também é uma forma de elevar a alma, e não apenas o intelecto.
  3. Jamais vou julgar um livro por ser “infantil demais”. Somos todos crianças nessa estrada de autoconhecimento e, aliás, algumas das melhores histórias são aquelas que nos permitem resgatar um sentimento de pureza, algo perdido ou escondido sob as camadas da vida adulta.

Talvez a minha resolução para este ano seja: resgatar a sensibilidade. Quem sabe?