Bagagem leve

Muita coisa tem sido dita sobre o desapego, tanto o emocional quanto o material. Dizem que, quanto mais abrimos mão das coisas, maior é o espaço criado em nossas vidas para o que realmente importa, inclusive para novas possibilidades.

O desapego virou moda, slogan de promoções em lojas e sites de compra e venda. Virou lema de vida para as pessoas que não querem se envolver emocionalmente, ou que decidiram não problematizar todos os aspectos da vida.

Na segunda-feira, assisti a um documentário em que um moço meio hippie contava sua trajetória de vida. Embora não tenha dinheiro, posses, ou uma carreira bem-sucedida segundo os nossos moldes pré-concebidos, ele já viajou pelo mundo todo, pagando por isso com os artesanatos que vende nas praias e nas cidades por onde passa.

Automaticamente, olhei para minha vida e pensei “que grande merda”. Trabalho todos os dias, ganho um salário razoável, e raramente viajo porque nunca tenho tempo, nem dinheiro. É bem provável que esse estilo de vida não seja o ideal para a grande maioria, mas isto me fez pensar em como nós complicamos tudo e criamos necessidades que não existem.

Quer dizer, para viver, não precisamos de muito mais do que água, comida, um lugar para dormir e suprir nossas necessidades básicas de higiene, e ter saúde. O resto, bem, acho que o resto foi todo inventado. 

O nosso sistema de vida nos ensina que quanto mais bens acumulamos, mais felizes seremos, e é difícil desvencilhar-se deste conceito. Somos educados para pensar que seremos premiados com bens materiais quando nos comportamos bem. Figuras como o Papai Noel e o Coelho da Páscoa perpetuam o conceito da meritocracia, como se fosse possível aplicá-lo à vida real, ao mundo adulto.

Crescemos, e logo percebemos que não é bem assim que as coisas funcionam e que, se quisermos conquistar estas coisas tão almejadas, precisamos nos esforçar absurdamente. Cada vez mais, desafiando todas as contrariedades. Passar por cima dos outros, competir, meio que num esquema de “matar ou morrer”. É uma vida um tanto quanto selvagem esta que levamos aqui no mundo civilizado. 

Enquanto milhões passam fome, uma minoria se estapeia nas lojas em época de liquidação. Como se aquele boneco dos Minions ou o liquidificador multifuncional tivesse o poder de salvar suas vidas ou arrebatá-los para um mundo de felicidade infindável.

Ninguém está imune ao desejo de ter cada vez mais, mesmo os praticantes da filosofia do desapego.

Eu achava que tinha o direito de dizer isto, pois sempre me considerei uma pessoa bastante desligada das posses, especialmente em comparação ao resto do mundo que parece viver numa corrida desenfreada para ter cada vez mais. Mas eu não sou mais especial do que ninguém. O consumismo também me pega pelos calcanhares diversas vezes.

Eu costumava me orgulhar de toda essa suposta ausência de apego da minha parte. Até que eu resolvi arrumar meu armário de roupas na tarde de hoje, um exercício que sempre faço a cada ano que se inicia.

Após mergulhar em mares de camisetas, saias, vestidos, peças de cuja existência eu havia me esquecido há tempos, uma pitada de tristeza pairou sobre mim como uma nuvem negra. Olhei para todos aqueles itens, alguns usados apenas uma vez, e me lembrei de cada uma das vezes que proferi a frase mais clichê que uma pessoa pode dizer diante de um armário abarrotado: não tenho o que vestir.

Senti vergonha e até asco de mim mesma por ter agido dessa maneira. Porque existem tantas pessoas que, de fato, não têm mais do que uma gavetinha de peças surradas para cobrir o corpo (quando têm) e que, se estivessem aqui no meu quarto, olhando para o conteúdo do meu guarda-roupa, talvez tivessem a sensação de estar em uma loja de departamentos.

Eu tenho muitas roupas. Tanto que, quando me mudei da casa de minha mãe e vim morar com meu marido, não consegui trazer tudo, pois aqui o espaço é bem menor. Depois de alguns anos, minha mãe me perguntou o que eu queria fazer com aquelas roupas e eu disse que ela poderia usá-las, mas que eu não queria doá-las ou jogá-las fora. O que sinaliza que estou bem longe de ser desapegada das coisas que não uso.

Este simples ato de arrumar o armário me fez refletir sobre como acumulamos coisas ao longo do tempo, sem ao menos perceber. Compramos algo novo, enfiamos em algum lugar, esprememos até o novo se fundir com o velho e não sabermos mais o que há atrás daquelas portas. Também é o que acontece com as nossas emoções, mas isto não vem ao caso agora.

Voltei no tempo e me recordei de todas as vezes em que minha mãe me fez escolher, com muita relutância da minha parte, entre esta ou aquela roupa, pois precisava liberar algum espaço. Ela, mulher tão simples e que, por vezes, usa a mesma roupa até não poder mais – literalmente – me ensinou muito sobre generosidade e desapego. Mas hoje eu percebo que ainda tenho um longo caminho de aprendizado até conseguir dizer que sou, de fato, desapegada.

Com as peças espalhadas sobre a cama, passei a olhá-las com outros olhos. Em vez de relembrar todos os momentos que vivi com um vestido preto quase nunca usado, que tenho desde 2008, ou de guardar, por mais um ano, as roupas que estavam separadas para ajustar depois que emagreci, comecei a vislumbrar a vida que estas roupas terão daqui para frente. As histórias que elas viverão nos corpos de outras mulheres, talvez até de outros homens, o sorriso no rosto destas pessoas ao se sentirem belas, confortáveis ou simplesmente vestidas.

Separei tudo o que não uso com frequência em quatro grandes sacolas, e me surpreendi com o peso que eu guardava no fundo do armário quando mal consegui carregá-las até o carro, onde ficarão até encontrarem seu destino final em alguma casa de caridade.

Quando voltei para casa, abri novamente o guarda-roupa e notei que, ainda assim, ele continua abarrotado. Eu tenho muitas coisas, talvez até mais do que eu preciso.

E é com este pensamento desapegado e minimalista que quero passar o resto deste ano que acaba de começar.


Imagem: Erol Ahmed